O Novo Cenário Fiscal para o Agronegócio sob a Reforma Tributária

A promulgação da Emenda Constitucional 132/2023 e a subsequente regulamentação pela Lei Complementar 214/2025 (LC 214/2025) introduzem a mais significativa reforma do sistema tributário brasileiro em décadas. Para o agronegócio, setor vital para a economia nacional, as novas regras representam uma reconfiguração profunda do cenário fiscal. A mudança fundamental reside na substituição de cinco tributos sobre o consumo (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA) Dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além do Imposto Seletivo (IS).

Embora o setor tenha sido contemplado com regimes diferenciados que visam mitigar o impacto, como a redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS para produtos in natura e insumos, e a isenção total para itens da cesta básica, a implementação traz desafios consideráveis. Um dos principais paradoxos é a substituição de isenções totais, que vigoravam em muitos estados para insumos agrícolas, por uma nova tributação, ainda que reduzida, o que eleva efetivamente os custos de produção. Outra preocupação crítica reside na falta de regulamentação clara sobre o ressarcimento de bilhões de reais em créditos fiscais acumulados de PIS/Cofins e ICMS, um capital que pode se perder sem um diagnóstico e uma ação prévia. A incerteza regulamentar se estende à aplicação do Imposto Seletivo, com debates em andamento sobre a potencial inclusão de insumos essenciais como agrotóxicos na lista de produtos sobretaxados.

A transição para o novo modelo não é um evento distante, mas um processo gradual que exige preparação imediata. Produtores e empresas devem priorizar o planejamento tributário, a auditoria de créditos acumulados e a adequação de seus sistemas de gestão (ERP) e compliance fiscal para garantir a competitividade e a conformidade neste novo cenário.

O Contexto da Reforma Tributária e sua Relevância para o Agronegócio

A Reforma Tributária, alicerçada na Emenda Constitucional 132/2023 e regulamentada pela Lei Complementar 214/2025 , estabelece uma nova arquitetura fiscal para o consumo no Brasil. A premissa central é a unificação de uma série de tributos federais, estaduais e municipais em um modelo de IVA Dual. A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) foram criados para substituir, de forma gradual, o IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS. Além disso, foi instituído o Imposto Seletivo (IS), que terá uma função extrafiscal, visando desestimular o consumo de produtos específicos. O novo sistema busca simplificar a complexa malha tributária atual, eliminando a cumulatividade de impostos ao longo da cadeia produtiva e promovendo maior transparência.

Apesar da promessa de simplificação, a transição para o novo modelo de tributação impõe uma camada de complexidade sem precedentes. Embora a unificação de impostos seja o objetivo de longo prazo , o cronograma de implementação é extenso e progressivo, estendendo-se de 2026 a 2033.

Durante esse período, as empresas deverão operar sob a coexistência dos sistemas antigo e novo, exigindo um esforço significativo em termos de gestão e compliance tecnológico. A manutenção de regimes diferenciados para o agronegócio e a continuidade de regras específicas para exportações também contrariam a ideia de uniformidade total, tornando a aplicação prática das normas mais intrincada do que o anunciado.

A tabela a seguir ilustra a substituição dos tributos vigentes.

Tabela 1: Substituição de Impostos no Novo Sistema Tributário

Impostos Atuais (Extintos Gradualmente)Novos Tributos
IPI – Imposto sobre Produtos IndustrializadosImposto Seletivo (IS)
Pis – Programa de Integração SocialContribuição sobre Bens e Serviços (CBS)
Cofins – Contribuição para o Financiamento da Seguridade SocialContribuição sobre Bens e Serviços (CBS)
ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e ServiçosImposto sobre Bens e Serviços (IBS)
ISS – Imposto Sobre Serviços de Qualquer NaturezaImposto sobre Bens e Serviços (IBS)

Os Regimes Fiscais Específicos do Agronegócio

O agronegócio, reconhecido por sua relevância estratégica para a economia brasileira, foi contemplado com tratamentos fiscais específicos na reforma. A legislação estabeleceu alíquotas diferenciadas e regimes especiais para distintos produtos e categorias de produtores.

Alíquotas Diferenciadas e seus Impactos

A reforma prevê uma redução de 60% nas alíquotas do IBS e da CBS para uma série de produtos in natura e insumos. Isso inclui itens agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais, bem como insumos como sementes, fertilizantes e defensivos. Além disso, os produtos hortifrutigranjeiros receberam isenção total, com alíquota zero.

Para a Cesta Básica Nacional, foi criada uma lista de produtos que terão alíquota zero, garantindo a desoneração para o consumidor final. Entre os itens com isenção total, destacam-se:

– Arroz, feijão, grãos de milho e de aveia.
– Carnes bovina, suína, ovina, caprina e de aves.
– Leite e fórmulas infantis, manteiga e margarina.
– Farinha de trigo, mandioca e de milho.
– Queijos como muçarela, minas, prato, de coalho, ricota, requeijão, provolone, parmesão e do reino.

A aparente vantagem da alíquota reduzida de 60% sobre insumos oculta uma alteração que pode, na prática, resultar em aumento de custos de produção para os produtores rurais. Atualmente, muitos estados concedem isenção total de ICMS sobre esses produtos. Com a reforma, esses benefícios fiscais estaduais serão eliminados em favor de uma única regra nacional. A nova regra, por sua vez, estabelece uma redução de 60% sobre a alíquota padrão, estimada em cerca de 28%.

Na prática, isso implica que insumos que antes não pagavam nada passarão a ser tributados em aproximadamente 11,2% (40% de 28%), elevando consideravelmente os custos de produção.

Regime Diferenciado para o Produtor Rural

A Lei Complementar 214/2025 instituiu um regime diferenciado, comparado a um “Super Simples Rural”, para produtores rurais com faturamento anual de até R$ 3,6 milhões. Esses produtores não serão enquadrados como contribuintes do novo sistema, o que os protege da complexidade burocrática e financeira. No entanto, para garantir sua competitividade, a legislação permite que eles gerem créditos presumidos para quem adquire seus produtos. O mecanismo de diferimento do tributo na aquisição de insumos simplifica o fluxo de caixa, pois o recolhimento do imposto é compensado pelo elo seguinte da cadeia.

O Imposto Seletivo (IS) no Agronegócio

O Imposto Seletivo, conhecido como “imposto do pecado”, é um tributo de natureza extrafiscal e regulatória, criado para desestimular o consumo de produtos que são prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. No agronegócio, o IS incidirá diretamente sobre a produção de tabaco e bebidas alcoólicas e açucaradas.

A regulamentação do IS, no entanto, ainda carece de clareza em relação a outros insumos. Embora a legislação afirme que os insumos agropecuários não estarão sujeitos ao Imposto Seletivo , a finalidade do imposto para produtos nocivos ao meio ambiente tem gerado debates sobre a inclusão de agroquímicos na lista de sobretaxação. Esta contradição tem gerado significativa incerteza jurídica e estratégica, impactando os custos de produção e a competitividade do setor, já que a definição final da lista de produtos sujeitos ao IS ainda não foi totalmente estabelecida.

A tabela a seguir consolida os regimes fiscais específicos para o agronegócio.

Tabela 2: Regime Fiscal do Agronegócio: Alíquotas e Benefícios

Categoria de Produtos/ProdutoresRegime Fiscal
Produtos hortifrutigranjeirosAlíquota Zero (100% de isenção)
Cesta Básica Nacional (itens específicos)Alíquota Zero (100% de isenção)
Produtos in natura (agropecuários, aquícolas, etc.)Redução de 60% na alíquota de IBS/CBS
Insumos (sementes, fertilizantes, defensivos)Redução de 60% na alíquota de IBS/CBS
Produtor rural PF/PJ (até R$ 3,6 mi/ano)Não contribuinte, pode gerar crédito presumido
Produtos como fumo e bebidas alcoólicas/açucaradasSujeitos ao Imposto Seletivo

Impactos Econômicos e Operacionais: Uma Análise Nuanceada

Oportunidades e Avanços

A reforma tributária introduz a não cumulatividade plena, um princípio que, em teoria, elimina o “efeito cascata” dos impostos, permitindo o aproveitamento integral dos créditos fiscais. Essa mudança pode reduzir a carga tributária final e tornar o sistema mais transparente. Adicionalmente, a reforma busca desonerar investimentos e exportações, uma demanda histórica do setor que deve impulsionar o crescimento do agronegócio e sua competitividade global. A simplificação dos tributos e a unificação da legislação visam ainda reduzir a burocracia e a alta judicialização que caracterizam o modelo atual.

Desafios e Pontos de Preocupação

Apesar dos avanços, o setor enfrenta desafios substanciais. A principal preocupação é o potencial aumento da carga tributária. Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a carga atual do produtor rural é de cerca de 5%, enquanto a nova alíquota padrão pode atingir 28%. Esse aumento pode elevar significativamente os custos de produção e afetar a lucratividade, o que pode influenciar negativamente as decisões de investimento e expansão.

Outro ponto crítico é o destino de créditos fiscais bilionários acumulados, principalmente de PIS, Cofins e ICMS. A legislação ainda não detalhou as regras para o ressarcimento desses valores, gerando uma incerteza que pode representar perdas financeiras substanciais para as empresas. A transição também exigirá investimentos consideráveis em tecnologia e compliance, o que pode pressionar o fluxo de caixa dos produtores. Para cooperativas, a reforma apresenta riscos adicionais, como a possibilidade de bitributação sobre o ato cooperativo e a incerteza regulamentar. O setor de logística e transporte também pode enfrentar uma carga tributária superior, pressionando os custos em uma cadeia de valor já sensível a margens reduzidas.

⁠O Cronograma de Transição e a Preparação Estratégica

A implementação da reforma será gradual, com um cronograma que se estenderá por quase uma década. A transição terá início em janeiro de 2026 com a aplicação de alíquotas-teste para a CBS (0,9%) e o IBS (0,1%), enquanto os tributos atuais permanecem em vigor. Em 2027, PIS e Cofins serão extintos, sendo substituídos pela CBS, enquanto o Imposto Seletivo entrará em vigor. O ICMS e o ISS continuarão a ser cobrados até o final de 2032, com a implementação total do novo sistema prevista para 2033. É importante notar que, a partir de outubro de 2025, o preenchimento dos novos campos de IBS e CBS já será obrigatório no ambiente de homologação para notas fiscais eletrônicas.

A longa duração do cronograma de transição pode gerar uma falsa sensação de tempo, mas a inércia pode resultar em perdas financeiras e de competitividade. As primeiras mudanças operacionais, como a substituição de tributos e a extinção dos créditos fiscais acumulados, terão início já em 2026. A recuperação de créditos fiscais acumulados, que remetem aos últimos cinco anos , exige uma auditoria prévia e uma ação proativa. A inércia pode fazer com que esses créditos, que representam bilhões de reais, se percam definitivamente. A necessidade de adequar os sistemas de TI e gestão para os novos modelos de nota fiscal e apuração é um processo complexo e demorado, que precisa ser iniciado com antecedência. A recomendação do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) é clara: os empresários do agronegócio devem iniciar um diagnóstico tributário detalhado ainda em 2025 para garantir a recuperação de créditos e se preparar adequadamente para a nova realidade fiscal.

A preparação antecipada não se trata apenas de conformidade, mas de uma corrida estratégica. Quem se antecipar, investindo em planejamento, tecnologia e consultoria especializada, estará em posição de mitigar riscos, otimizar sua carga tributária e obter uma vantagem competitiva sobre os concorrentes menos preparados.

Tabela 3: Cronograma de Transição da Reforma Tributária (2026-2033)

AnoPrincipais Marcos da Transição
Outubro de 2025Preenchimento obrigatório dos campos IBS e CBS em ambiente de homologação
2026Início da transição com alíquotas-teste de IBS (0,1%) e CBS (0,9%)
2027Extinção de PIS e Cofins e instituição da CBS com alíquota cheia; início da cobrança do Imposto Seletivo
2028-2032Convivência do IBS com ICMS e ISS, com extinção progressiva
2033Implementação integral do sistema com a extinção total do ICMS e ISS

⁠Considerações Regionais e Setoriais

A reforma tributária tem implicações regionais e setoriais distintas que merecem atenção. No contexto regional, estados com forte economia agrodependente, como o Mato Grosso do Sul, manifestaram preocupação com a possível extinção de fundos específicos. Um exemplo é o Fundersul, um fundo estadual que financia a infraestrutura rodoviária e é vital para o escoamento da produção. A extinção de fundos como o Fundersul ou o Fethab, que operam em outros estados como Mato Grosso, Tocantins e Pará, levanta questões sobre a substituição de suas fontes de financiamento e o potencial impacto nos custos logísticos e na competitividade regional.

Setorialmente, as cooperativas, que representam uma parte substancial do agronegócio brasileiro, estão no centro das mudanças. Com um modelo jurídico diferenciado, essas organizações podem enfrentar riscos de bitributação e pressões sobre o “ato cooperativo”, uma incerteza que demanda regulamentação específica e clara. Da mesma forma, segmentos intermediários da cadeia, como o transporte e a armazenagem, podem enfrentar uma carga tributária superior devido à extinção de benefícios anteriores, o que pode pressionar os preços finais e as margens de lucro.

⁠Conclusão e Perspectivas Futuras

A Reforma Tributária, tal como delineada pela Emenda Constitucional 132/2023 e pela Lei Complementar 214/2025, estabelece um novo paradigma para o agronegócio brasileiro. A mudança de um sistema complexo e fragmentado para um modelo de IVA Dual, com a promessa de não cumulatividade plena e desoneração de investimentos e exportações, é um avanço significativo que pode impulsionar a competitividade do setor a longo prazo.

No entanto, os desafios no período de transição são imensos e exigem uma abordagem estratégica. O aparente benefício da alíquota reduzida sobre insumos esconde um aumento efetivo de custos para muitos produtores. A incerteza sobre o futuro dos créditos fiscais acumulados e a aplicação do Imposto Seletivo adicionam camadas de risco financeiro e jurídico. O longo cronograma de transição, que se estende até 2033, não deve ser interpretado como um convite à inércia, mas sim como uma oportunidade para que os agentes da cadeia produtiva se preparem e se adaptem com antecedência.

O sucesso do agronegócio na nova era fiscal dependerá diretamente da capacidade de cada produtor e empresa em antecipar as mudanças. A proatividade no planejamento tributário, o investimento em tecnologia de gestão e a busca por orientação especializada são imperativos para mitigar riscos, otimizar a carga tributária e transformar a transição em uma vantagem competitiva sustentável.

(*) Régis Santiago de Carvalho é Advogado há 25 anos, sócio da banca Régis Carvalho Advogados Associados (www.regiscarvalho.adv.br), Palestrante, Mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (Portugal), pós-graduado em Direito Constitucional, Especialista em Direito Processual Civil, Tributário, Eleitoral e Bancário (com ênfase em crédito rural); Professor em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito, Foi Conselheiro Estadual da OAB/MS por 4 mandatos, é Presidente e Fundador da Academia de Direito Processual de Mato Grosso do Sul – ADP/MS, é autor da obra “A Insujeição da Sentença Arbitral ao Precedente Judicial Previsto no Código de Processo Civil de 2015”, Editora Life e Coautor das obras “Práticas Contemporâneas Trabalhistas e Previdenciárias” – Tema: Os Provimentos Judiciais Legalmente Vinculantes e seus Reflexos nas Lides Previdenciárias – – Editora Quartier Latin – 2019, “O Procedimento de Cassação de Mandato de Prefeitos e Vereadores – Aspectos Atuais do Decreto-Lei nº 201/67 à luz da jurisprudência e do CPC/2015” – Life Editora – 2019 e “Os efeitos patrimoniais da união estável na terceira idade e a (in)constitucionalidade da imposição legal do regime de separação obrigatória de bens prevista no Código Civil Brasileiro” – Life Editora – 2022. Figurou por 2 vezes na lista tríplice para o cargo de Juiz Eleitoral do TRE/MS (2019 e 2023). Atualmente exerce o cargo de Diretor Tesoureiro da Escola Superior da Advocacia de Mato Grosso do Sul (ESA/MS), gestão 2025-2027.